Conheça o grande segredo de Clarisse. Era uma vez uma ratinha chamada Clarisse. Clarisse tinha as faces rosadas e usava um vestido e uns sapatos cor-de-rosa.
Era encantadora, com um pescoço delgado e olhos de gazela. As pessoas costumavam dizer-lhe:
– Como és meiga-linda-simpática! — e ainda: — Um dia vais ser arrasadora! — e, em frente da mãe, as pessoas diziam, abanando o indicador:
– Cuidado com a sua Clarisse! Ela ainda vai despedaçar muitos corações!
E Clarisse baixava os olhos sem compreender lá muito bem o que queriam dizer. Despedaçar corações? Ela, a quem chamavam meiga-linda-simpática? Os adultos tinham ideias estranhas. Às vezes eram incômodos aqueles olhos brilhantes fixos nela, aqueles beijos no pescoço, aquelas carícias nos braços, aquelas perguntas indiscretas:
– Então, tens algum namorado lá na escola?
Clarisse rodava na sua saia cor-de-rosa comprida e fazia uma careta.
– Mais tarde — dizia — vou ser bailarina ou estrela de cinema. Ou cantora de ópera. Hei-de ser sempre a mais linda do mundo!
– Tens muito tempo para pensares nisso — respondia a mãe. — Ainda só tens seis anos.
E dizia às pessoas:
– Deixem-na viver. Só tem seis anos.
Mas elas não deixaram Clarisse viver a vida.
Um dia então, num escuro buraco de ratos, agarraram Clarisse e cobriram-na de beijos e disseram-lhe:
– És meiga-linda-simpática!
Eram as mesmas palavras, mas não eram os mesmos gestos. Clarisse sentiu bem a diferença. Viu bem a diferença entre os joelhos daquele senhor e os joelhos dos outros adultos. Entre as carícias que ele lhe fez nas pernas e por todo o corpo de ratinha cor-de-rosa. Aquelas festinhas eram estranhas: misturava festinhas que se fazem aos ratinhos pequenos com as que fazem aos ratinhos grandes.
As palavras eram as mesmas mas não eram ditas da mesma maneira: murmurava-lhas ao ouvido, como a uma senhora. Era estranha aquela mistura entre o horror e o prazer que tudo aquilo lhe inspirava.
Mas ela não disse que não. Não se diz que não a um senhor de gravata.
Não se diz ‘não’ quando se é “meiga-linda-simpática” e quando se corre o risco de vir a despedaçar corações.
Quando voltou para casa, Clarisse tinha a cabeça às avessas, e o corpo também. Fechou-se no seu buraco de ratinha e enrolou-se sobre si mesma a pensar no que o senhor lhe tinha dito:
– É um segredo só nosso. Se disseres a alguém, a tua mãe morre. Juro-te.
E foi assim que, naquela noite, no buraquinho de ratos, o segredo nasceu no fundo do peito. A princípio, era uma bolinha de nada, que não se podia deixar escapar. Tinha de a esconder, fechar a cadeado, para que nada pudesse acontecer à mãe.
Naquele dia, Clarisse deixou de falar. Tinha medo que o segredo se escapasse e fosse destroçar o coração da mãe. À noite, passou a exigir que fechassem a porta do seu quartinho cor-de-rosa com duas voltas na fechadura, não fosse ela falar durante o sonho.
Mas também pediu uma luz de vigia para não ficar sozinha com o seu segredo.
Ela, que sempre saltitara, alegre e cor-de-rosa, passou a ficar parada e lívida. “Nunca se sabe” pensava ela. “Se me mexer, o segredo também se mexe e a bolinha rebenta.” Então, enrolou-se sobre si mesma, os braços à volta dos joelhos, a cabeça caída sobre o peito, com o segredo bem protegido.
O segredo na garganta continuou a engordar. Invadiu a garganta até abafar os risos e os suspiros. Nas aulas, não respondia. Deixou de rir no recreio e, um dia, quando a sua amiga Alice contou, a rir, que tinha visto o papá e a mamã a fazerem festinhas dentro da cama, ela fugiu para o outro lado do recreio, com as mãos a tapar as orelhas cor-de-rosa e o coração a bater.
Clarisse perdeu o hábito de falar. Só ela sabia de quem era a culpa: era da grande bola, que não parava de crescer.
– Vá lá — dizia a mãe. — Tens de comer! Tens de falar, se não, vais morrer.
Atemorizada, Clarisse olhava para ela e pensava: “Mas, se eu falar, quem morre és tu, mãe. Foi o que me disse aquele senhor!”
Quando o médico veio para a examinar, Clarisse encolheu-se ainda mais sobre si mesma, a cabeça caída sobre o peito, numa dor muda.
– Não, não, não — fez ela com a cabeça. E não disse mais nada.
Os grandes segredos são contagiosos, e a mãe de Clarisse também deixou de sorrir.
– Vais matar-me de tristeza — dizia ela — por deixares de falar.
E então Clarisse voltava a pensar nas palavras do senhor: “Se falares, a tua mãe morre.” Então qual dos adultos é que tinha razão?
Um dia, portanto, Clarisse soube que o senhor do buraco escuro tinha ido para a prisão. Para um buraco ainda mais fundo. Naquele dia, o segredo decidiu sair, e a bola rebentou.
As palavras saíram como puderam, todas ao mesmo tempo, desordenadas e entre gritos. Foi preciso pô-las por ordem: sujeito, verbo, complemento. “Brincaram comigo!” “Faltaram-me ao respeito!”, “Tocaram no meu corpo, nas minhas pernas. Fizeram coisas em mim que eu não queria”, “Ele disse que tu morrias.” E foi a vez da mãe ficar muda, perante aquela terrível revelação.
– Nunca aceites um segredo que não venha de ti! Nunca deves acreditar num adulto que mexe no teu corpo. Há pessoas que são más com as crianças e que as fazem acreditar em coisas incríveis. Se alguém te fizer festas que te perturbem, deves contar a uma pessoa crescida… imediatamente!
A mim, ao pai, à tua madrinha, ou mesmo a uma amiga, se não, isso começa a crescer e a inchar dentro de ti como uma bola de tristeza.
Com o tempo, Clarisse começou a pintar, a brincar, a desenhar, a comer, a falar direito: sujeito, verbo, complemento. O corpo e o espírito tinham recuperado a agilidade de uma ginasta. Sentia-se tão leve, sem aquele horrível segredo! Mais tarde, a ratinha cor-de-rosa voltou a ter segredos de rapariga. Os verdadeiros segredos são estes: os que são criados por nós e não impostos à força.
(Site Histórias para os mais Pequeninos)